Bom, melhor eu avisar antes. O que você vai ler, se ler, aqui embaixo é um ligeiro esboço de algo que tem ocupado minha cabeça nos últimos dias; algo que eu, pretensiosamente, chamei de “teoria” dias atrás, mas que não é nada além de uma observação despretensiosa de fatos que foram se sucedendo à minha volta. E, eis o aviso, o texto conterá expressões e palavras que podem fazer certas pessoas revirarem os olhos e me considerar um caso perdido. Então, me poupe de comentários desagradáveis; se você quer discutir civilizadamente, fique à vontade, estamos aí pra isso; agora, se a intenção é só me chamar de burro e seguir adiante, não gaste meu tempo à toa. Pronto, aviso dado.
Antes de tudo, ouve essa música:
Essa música é de um grupo chamado Kapela ze Wsi Warszawa. Esse nome todo traduzido porcamente para o português torna-se algo como Banda do Povo de Varsóvia. Essa banda, como o nome sugere, trata-se de um grupo polonês que, em seu último disco lançado, Wykorzenienie (Desenraizando, 2005), viajou por todo o interior da Polônia em busca de elementos musicais tradicionais, que eles registraram e depois utilizaram na produção do disco. Aqui, um outro exemplo.
Os elementos que o grupo buscou, segundo explicou o líder da banda, o músico Wojciech Krzak, são fragmentos de tradições musicais sobreviventes nos lugares mais ermos do país. Isso tudo, esse trabalho todo de gravação, pesquisa, tratamento, fora as longas viagens, surgiu como uma necessidade diante dos olhos desse pessoal, mas isso eu explico mais embaixo.
Essa banda polonesa, assim como alguns outros artistas ou grupos que eu tenho descoberto recentemente através da internet fazem parte de um estilo musical imenso e muito poderoso conhecido como World Music. Além de ser mais uma das muitas etiquetas que usamos para identificar as produções musicais – de modo a conseguir, racionalmente, correlacioná-las e entender sua gênese, inter-relação e conseqüente evolução –, essa pode ser vista sob outro ângulo, não tão reduzido assim.
Acho que antes de falar o que de fato pretendo, vou dar mais alguns exemplos das músicas que tenho ouvido e que têm-me feito refletir. A maior parte das músicas tem sido (nesses últimos dias) músicas do Leste europeu, de países como a já explicitada Polônia, mas também a Croácia, a Sérvia, a Romênia… Há produções de outras partes, como, por exemplo, das geladas Finlândia e Ilhas Faroé (um arquipélago no Mar do Norte, próximo, em termos, da Islândia), da remota república de Tuva, uma das muitas entidades componentes da moderna Federação Russa, localizada na fronteira com a Mongólia (de onde, aliás, descende grande parte de sua tradição musical)…
O grupo Loituma, finlandês, que ganhou certa popularidade fora da Finlândia depois que a sua mais famosa produção, a polca “ievan Polkka”, serviu de trilha sonora pra uma seqüência em flash. Essa aqui não é tão famosa, mas é um arranjo vocal bastante bonito, em minha opinião. Aliás, a obra do grupo, formado por ex-alunos de um instituto destinado ao estudo dos ritmos tradicionais do país, é quase toda composta por arranjos vocais – três vozes femininas, uma masculina.
Aqui, o quarteto Huun-Huur-Tu, de Tuva. A tradição daquelas partes gira em torno do canto gutural, que é uma forma de emitir diferentes freqüências de sons sobrepostas através do controle dos órgãos da fala (boca, laringe e faringe). Não é um som comum e possivelmente não seja agradável para a maioria, mas é algo incrível e muito interessante.
“Sorte”, na voz de Cesária Évora, uma cantora cabo-verdeana, que começou a cantar a “morna” – o ritmo tradicional de Cabo Verde (um país insular próximo à costa oeste da África) – ainda adolescente, mas que só despontou para o mundo depois dos quarenta anos, quando foi convidada a fazer algumas apresentações em Portugal. O ritmo é muito semelhante à música brasileira, bastante calcada nas percussões e na levada indolente, típico das regiões influenciadas pela presença da cultura negra. Além disso, ela canta num dialeto creole que mistura a estrutura do português lusitano com palavras africanas – bastante difícil de entender.
Bom, mas falei e mostrei tudo isso pra retornar à banda de Varsóvia. Lendo as informações da banda no site da Last.fm (um fantástico fórum para “fuçar” boa música) qual não foi minha surpresa ao descobrir que eles buscam com sua música justamente aquilo que eu supus que eles (e todos os outros) pretendiam. Ou seja, a minha “teoria” – que não chega a ser uma – comprovou-se e isso me alegrou bastante.
[Agora começa a parte que pode fazer alguns revirarem os olhos indignados.]
Os elementos culturais tradicionais ganharam uma relevância sem precedentes nesses dias que correm. Por dois motivos.
Um: as pessoas passaram a insistir nas suas raízes históricas, passaram a se apoiar nelas, a respeitá-las e a admirá-las. É um fato. A quantidade de jovens artistas que trabalham suas artes bebendo na fonte daquilo que o passado oferece é incrível. Não é raro, na verdade, é bem comum, por exemplo, encontrar bandas musicais que se descrevem como uma banda de rock alternativo que procura unir elementos deste ritmo absolutamente moderno com elementos da música tradicional do lugar onde vivem.
Essas pessoas, os artistas, sempre eles, encontraram uma maneira de tentar frear o movimento global de homogeneização das mentes. Hoje em dia (virem os olhos) a globalização procura criar modelos planetários de comportamento, intrinsecamente associados a formas bem definidas de consumo, inclusive (e principalmente) na cena musical. Todos, no mundo todo, “cidadão globais” de uma suposta “aldeia global”, ávidos por consumir o mesmo que determinados ícones consomem, menosprezando produções caseiras, que remetem diretamente à formação de cada uma dessas pessoas enquanto cidadãos e indivíduos. Então, vemos pessoas que se levantam contra isso, que se incomodam a buscam alternativas – num mundo onde a lógica é a de que não há alternativas possíveis – e reafirmam-se segundo suas nacionalidades e características geradoras.
Dois: o (virem de novo) capitalismo dessa nova fase – a financeira – percebeu nesses elementos culturais tradicionais uma nova forma de lucrar. É bem simples, na verdade.
Antes, lá no começo do século 20, a produção dava o lucro. O capitalista explorava o trabalhador e através do processo da mais-valia, via seus lucros crescerem. Nesses dias, todos queriam as novidades que saíam pelas portas das fábricas – tudo sempre igual, sem características que diferenciasse o que um tinha do que o outro tinha; o importante era que todos tivessem. Depois, por volta dos anos 50, as indústrias mudaram. Mudaram suas estruturas (que se descentralizaram: produção num lugar, administração, pesquisa e gerenciamento em outro) e também a sua relação com os consumidores. As pessoas queriam coisas diferentes, já estavam cansadas de ter sempre uma geladeira igual à do vizinho. Nesse ponto, entra em cena o setor de design dentro da indústria e a propaganda ganha uma força jamais imaginada. Todo mundo comprando aquele carro porque o espelho era alguns centímetros maior do que o da concorrente… Bons tempos.
Hoje, depois de tudo isso, num tempo em que as pessoas já não se satisfazem mais apenas com um produto minimamente diferente do que o vizinho tem, as indústrias, os capitalistas, precisam dar seus pulos pra conseguir manter a lucratividade. Hoje, o que dá mais lucro não é a produção – a engrenagem continua encaixada da mesma forma: as pessoas continuam trabalhando mais do que precisariam e esse excedente continua indo pro bolso dos donos –; mas a menina dos olhos do capitalismo financeiro é a especulação pura e simples, ou seja, é aquilo que se diz (mesmo que de fato não ocorra) sobre a empresa que conta. A Nike não produz um par de tênis – ela vende a sua marca e administra os lucros fabulosos que advém desse expediente.
Um bom exemplo de como isso funciona é uma peça publicitária que anda sendo veiculada na televisão ultimamente. O produto é uma sandália da Grendene. A garota-propaganda é a modelo Gisele Bündchen. O cenário é uma tribo kisedjê, no interior da reserva do alto Xingu, em algum ponto entre o norte de Mato Grosso e o sul do Pará. Dentro da taba a modelo recebe os cuidados de várias índias, que lhe pintam o corpo, enfeitando-a com penas e colares. Fora da taba muitos índios dançam e cantam pedindo chuva aos deuses. Quando, finalmente, a benção vem o cacique ou o pajé, não sei bem, recolhe numa vasilha um bom tanto de água. Ele entra na taba e posiciona a vasilha, de modo a que ela sirva de espelho para La Bündchen que se apronta e precisa estar linda. No fim, a voz do locutor anuncia: “Grendene, Gisele Bündchen e Projeto ‘Y Ikatu Xingu”, ou qualquer coisa assim.
Não se discute o mérito, mas sim os métodos. Se a campanha publicitária conseguir sensibilizar as pessoas para um problema tão sério quanto o desmatamento das cabeceiras do rio Xingu, ótimo. Mas, convenientemente, essa campanha vai unir o nome da firma de calçados à do projeto sócio-ambiental. E é essa a nova estratégia: um produto que tenha por trás de si alguma ação benemérita, de assistência social, de cunho ambientalista ou qualquer coisa do gênero, ganha terreno na competição eterna. Porque hoje não basta ser diferente aos olhos do consumidor; a imagem da empresa como um todo diante desses mesmos olhos é tão ou mais relevante. Novamente, não estou discutindo os méritos (ao menos não agora), essas palavras são só o relato daquilo que de fato tem acontecido.
Trazendo todas essas informações pro campo da música, que é o que me interessa, é fácil imaginar como tudo acontece. Essa mesma lógica que comanda a lucratividade da indústria como um todo, se aplica à indústria fonográfica, que, percebendo o enorme potencial das culturas tradicionais como meio de agregar valor aos seus produtos, entrou de cabeça nesses bolsões antigos e se apropriou dos elementos que os constituíam. Incluindo algumas coisas em produções integralmente relacionadas à tentativa de homogeneização cultural. Desse jeito acabaram subvertendo a própria existência das tradições, que deixaram de ser resistência para tornarem-se produto dos novos tempos.
Agora, depois de ter dito tanta coisa, de ter causado gastrites nos estômagos alheios, volto, finalmente, à banda que ensejou todo esse falatório.
A Kapela ze Wsi Warszawa, em seu manifesto criativo, diz, explicitamente, ser “a response to mass culture and narrow-mindedness”. Eu li isso depois, bem depois, de pensar em tudo o que veio antes no texto, depois, inclusive de contar para uma amiga, a Marina, e para o meu caderno. Quando li, mal pude me conter: eu estava certo.
As pessoas mundo a fora (e aqui no Brasil, com certeza, exemplos não faltam) passam a se questionar e a se incomodar com essa idéia da “aldeia global”, repleta de “cidadão globais”. É um incômodo, eu não chamaria de revolta; porque, na essência, a idéia de tudo de todos ao mesmo tempo e sem rinchas estúpidas não é má. Seria ótimo poder ser aquilo que se quer, sem ter que dar satisfações a todo o momento. Mas, no entanto, a maneira como a coisa vem acontecendo, de certa forma mina a possibilidade de isso um dia tornar-se realidade. A homogeneização da cultura mundial, a escolha por um único caminho possível, não considerando as infinitas possibilidades, estraga uma idéia que é incrível. Não se pode pensar num mundo que aprenda a conviver em paz, se esse mundo terá que fazer isso de acordo com um único modo de pensar, de gostar, de ser, de entender o mundo em que vive… Desse modo, sem se respeitar as diferenças, acho pouco provável que alcancemos estágios mais elevados de convivência pacífica.
A “teoria” era essa. Pouco pretensiosa, eu acredito. Qualquer um notaria tudo isso se passasse horas escutando músicas de diferentes países, lendo sobre a formação dos grupos, sobre a história de cada ritmo… Fica a pequena contribuição para maiores reflexões, portanto.
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Alguns links interessantes:
At-Tambur, um site português, dedicado à “música do mundo”.
Eye For Talent, uma espécie de catálogo (bastante completo) dos principais artistas da world music.
fRoots, uma revista eletrônica e um ótimo guia pelos descaminhos para a “local music from out there” – a melhor definição para world music que eu já vi.