2006

Nesse ano as pessoas me acharam. Se eu precisasse dar um epíteto para esse dois-mil-e-seis que termina, diria sem pestanejar muito: 2006, ano dos encontros. Meu, comigo; deles, comigo; meu com eles. A cada novo dia, um sem-número de possibilidades. Tentei aproveitar a maior parte delas – tanto que em muitas noites, saí de casa com direção à universidade justamente por acreditar que se ficasse, estaria perdendo alguma dessas chances. Na maior parte do tempo, fui bem recompensado. Foi o ano em que a história se repetiu e eu precisei (ainda preciso) reafirmar minha convicção de que amar não é sofrer, que gostar não pressupõe o ter, que pra gente ser feliz, basta ter o coração pleno e a mente firme nesse propósito. A maior parte dos dias desse ano pertenceu a uma menina encantadora, a materialização de sonhos acalentados durante outros anos. Ainda preciso aprender a lidar com tesouros… A afobação, o desbragamento, a ânsia – tudo fruto de uma cabeça que nunca pára e que não entendeu, ainda, que existem horas de parar, de esperar, de refrear. Mas tudo bem. Agradeço por ela ter aparecido numa tarde quente do começo do ano, por ter-me feito voltar a acreditar e a sentir – coisas que eu estava quase esquecendo naqueles dias. Se não aconteceu, o que se há de fazer? Eu sei: lembrar. Foram muitas as pequenas alegrias que esse passeio acabou me trazendo. Aqueles momentos em que a gente sorri sem pensar em sorrir; ele escapa, aparece no canto da boca e deixa a sensação de que o mundo é todo feito de momentos mágicos. Um sorriso, um olá, um aceno, uma risada, uma lágrima… Um abraço…

Dois-mil-e-seis vai acabando e é bom que acabe. É bom porque apesar das lições todas (eu acho que preciso encarar assim), foi um ano realmente difícil, cansativo, atribulado. Vai acabando e hoje, dia 30 de dezembro, chove mansamente nas montanhas aqui em volta. Nenhum tempo me desnuda mais do que um dia de chuva lenta, com nuvens gordas e acinzentadas no céu. Nenhum. Troco qualquer dia de sol por uma noite de chuva. E é geralmente nessa noite de chuva que me descubro ainda um pouco mais. Dois-mil-e-seis não teve muitas dessas. Minhas descobertas aconteceram sob a luz ofuscante do Sol, meu amigo-inimigo mais querido. E quantas vieram. Minha primeira vez como professor, como pesquisador… Um mestre a elogiar meu trabalho. São as sensações que vou levando – as pequenas alegrias de que falava ali em cima.

Para dois-mil-e-sete espero pouco, quero muito. Não prometo nada, não duvido de nada. As portas vão continuar abertas, à espera de quem queria entrar – me convidando insistentemente a sair de mim e ir caminhar, sob chuva, sob sol, disposto, aberto, possível.

Obrigado a todos aqueles que me acharam e àqueles que me descobriram.

Feliz ano novo.

É só vontade de escrever, mas sem saber o quê. É n…

É só vontade de escrever, mas sem saber o quê. É necessidade que vem de dentro – feito eu expliquei a ela, na mesa do bar ontem: tem coisas que não se diz, tem coisas que se esconde.. De tanto esconder, todas juntas num mesmo lugar, acaba que enche – e precisa sair um pouco pra continuar entrando. Porque não pára de entrar. Isso é fato. Pra tirar um pouco, eu escrevo. E acontece dias como esse de hoje: dá vontade de escrever, mas não tem idéia nenhuma.

Música, então. (E que subam os créditos.)

Iron & Wine – Naked as we came

dia de domingo*

É o seguinte:

Levanto da cadeira depois de ter escrito qualquer coisa e vou até a porta que fica aqui ao lado. A porta dá para um dos muitos morros. O morro acaba em céu estrelado sem lua, apesar das nuvens. Encosto no batente da porta e olho pra fora, por alguns segundos: contemplando tanto a escuridão, quanto os pequenos pontos de luz que pipocam no morro logo em frente. Tem um condomínio de prédios no vale. A uma hora dessas e ainda vejo o brilho azulado de televisões (ou de computadores) bruxuleando nas cortinas. Sento de novo. Está calor e aqueles bichinhos burros que batem a cabeça nas lâmpadas infestam a minha sala, cobrindo pequenos pontos da tela. O som das teclas é agradável – especialmente o barulho daquelas que aperto com meu dedo médio. Um dia inteiro sob o sol, bebendo cerveja e vinho, cantando e rindo. Agora: silêncio. E a sensação de que fazem milênios desde que tudo aconteceu. Algumas novidades ruins. Um leve empurrão, no fim, estragando tudo. Não um empurrão óbvio – só quem também estivesse abraçando perceberia. “Sabe quando os olhares se sustentam por alguns segundos e dentro desses segundos nasce um sorriso singelo nos lábios de quem olha?” – então. Vontade de dizer tudo, de acabar logo, de ouvir a resposta previsível e ficar apenas triste. Porque tristeza ensina e acaba. Esperança e teimosia são eternas e só atrapalham. “Mas os olhares… por alguns segundos…” – pois é. Querendo rir e esquecer. “Desencanar”, é essa a palavra. Um pouco de vontade de chutar tudo, de ir embora… Não sei pra onde. Talvez pra minha próxima ilusão.

Mais ou menos isso.

* a expressão é dela.

A gente deve riscar livros novos? Livros que ainda…

A gente deve riscar livros novos? Livros que ainda cheiram a tinta fresca, que a gente acabou de ganhar. Risca? Eu não sei. Ainda não consegui. Vou escrever aqui, passar pra um caderno novo depois, não sei.

O Jogo da Amarelinha, Julio Cortázar. Primeira página, primeiro capítulo, primeiro parágrafo – todo ele, mas especialmente o fim.

Encontraria a Maga? Tanta vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-se entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E, então, era muito natural atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia.

Enquanto reproduzia o trecho, ia me perguntando o motivo de estar fazendo tal coisa. “Pra quê?” – era a pergunta incômoda. Não sei responder com grande exatidão. Acho que talvez seja o reencontro com alguma poesia nessa vida. É a minha luta pra conseguir aceitar (ainda que não seja uma obrigação ou um fardo pesadíssimo) a idéia de que o que vale a pena talvez seja o caminho, a trilha, e não necessariamente o destino final. É a idéia da travessia , do Grande sertão: veredas, do Rosa. Que me leva direto e reto a uma menina que insiste em repetir isso pros meu olhos teimosos, que por sua vez não passam de reflexos iluminados de uma cabeça dura que dificulta bastante a entrada de coisas novas e tão simples quando essa idéia de travessia.

A vida sem sentido. A vida sem objetivos finais. Cada dia pelo que ele é. A imagem de um rapaz andando, caminho de terra batida, não se vê o começo, já muito lá pra trás, e não se vê o fim, tampouco. Ele vai andando, olhando ao redor, saindo do caminho, voltando…

Lutar pela poesia no dia-a-dia. Ótima resolução de ano novo…

Matutando

Vidinha estranha essa de às vezes a gente querer muito e tanto, que na hora, desquer. Quando se quer muito a coisa tal, fica com isso na cabeça de nunca sair. E remói de tudo quanto é jeito possível e despossível, sem chegar em ponto algum, porque é coisa tal que se sai nunca volta, se-quando volta já passou o tempo do dizer-que-chegou e aí, bom, aí é a velha conversa de querer não-querendo. E como a gente quer coisa, moça. A gente quer tudo quanto pode pegar e, naquela hora em que tudo já é nosso, fica querendo e sofrendo agonia burra de querer o que não pode pegar. Burrice manca, é o que eu digo.

Homem burro feito eu se apaixona por olhar, se encanta com um sorriso que se for ver bem visto, nem era pra ser meu. Mas a senhora sabe bem como são essas coisas, os olhos, coitados, os olhos só vêem, quem segura de não largar nunca mais é o sentimento, é o que eu sei. Sentimento que vai transbordando pela beiradas e pelos buracos da cabeça. Inclusive sai pelo olho. Diz que tem gente que sabe ver amor vazando olho-a-fora. Eu mesmo não sei não. Quer dizer, penso que não sei. Melhor seria: penso que sei. Mas na verdade verdadeira desse mundo de meu Deus, a única coisa sabida é aquilo que a gente sente, sabe? E eu sinto muito, tanto. Muitanto.

Se eu pudesse, mas não posso, preferia ter nascido menos sentidor. “Senti-dor”, vai vendo… Que aí eu acho que a vida ia parecer leve feito pena de pássaro, que passa a vida (e pena tem vida?!) brincando zueira com o bafo quente que vem de dentro da terra. Não dentro lá de dentro; dentro lá de onde o céu encontra o chão… Entende? Esse bafo. Mas não adianta. Gente que nega aquilo que é, só consegue se confundir e no fim ficar sem saber quem foi. Um dia gente assim olha pra trás e percebe que jogou de lado parte da vida inteira que não volta, que quebra e não cola, que desmancha no tempo. É dó doida ver essa hora. Eu mesmo não vi não. Mas sei de gente que viu e na mesma hora voltou assustado pra dentro de casa, abraçando tudo quanto foi parente, amigo, irmão e desafeto que viu pela frente. Medo de não-ser. Sabe Deus o que deve ser ruim isso…

Quero vida mansa, devagarinha, devagarinha. Digo pra senhora, dona moça, com a sabedoria que a vida severina me deu: vida mansa se faz aos poucos, engolindo o mundo com farinha. E é.

das referências

O caminho quem faz é o caminhante. Um provérbio espanhol… Será que consigo traduzi-lo? Acho melhor não. Ouvi da boca de uma geógrafa gaúcha, de sobrenome Suertegaray, que veio palestrar semanas atrás para alguns alunos da pós-graduação. Espanhóis adoram provérbios e tem frases feitas sobre todas as coisas. Inclusive dizem que “para juzgar a un pueblo conviene leer sus proverbios”; de modo que se especializaram na produção dessas sacadas tão pitorescas, recheadas de sabedoria popular.
E daí você me pergunta: o que isso tem a ver contigo, se veio aqui para ler sobre mim e não sobre provérbios? Bom, meu avô era filho de espanhóis. Não adianta? Vieram de Valência, meus bisavós. “Per fare l’America.” Ah, não… Esses são os outros. Venezianos, tutti quanti. Então, pronto, começamos a nos entender. Quer ver? Pois explico.
Tem muita gente que não suporta a idéia de que podemos nos orgulhar de ter nascido nesse ou naquele lugar, não entendem ou não aceitam o que chamam de “cegueira patriótica”. Primeiro ponto, portanto: não sou desses, haja visto que me orgulho até mesmo dos locais de nascimento dos meus antepassados. Gosto de imaginar que a construção histórica que deu origem à família Bacchin de Veneza e à família Gonzales de Valência, de um jeito ou de outro, acabam influenciando na minha própria vida. Dizem que os espanhóis têm o sangue quente – e se isso for verdade, ela se realiza em mim, se não for, bom, então eu sou só um cara de “pavio curto”, como se diz.
Por outro lado, tenho um avô baiano de Vitória da Conquista. Aqui cabem algumas outras considerações.
Não conheço pessoa mais afeita ao trabalho árduo do que meu querido avô, que beirando os noventa anos, continua ativo e atarefado como quando chegou por aqui, fugido da terra natal. Fica portanto descartada a idéia do “baiano indolente”. Outra coisa. Meu avô quando chegou a São Paulo tinha que trabalhar e isso só se fazia com uma carteira de trabalho assinada (estávamos bem além das reformas trabalhistas propostas por Vargas, lá pelos idos de 1930); então, mui prontamente, ele se encaminhou à repartição pública responsável por esse serviço, buscando satisfazer as condições impostas pela lei (ora, a lei). Quando lhe perguntaram seu nome, respondeu prontamente: “José Bonifácio”. E quedou-se calado, à espera de nova solicitação. O funcionário público, naquele tempo já experimentado na lide de seu ofício diário, viu-se na obrigação de esclarecer a meu avô que um nome completo compunha-se de um nome próprio – que ele já dissera – e de um sobrenome, que de uma certa forma, remetesse à família da qual a pessoa descendia – a que, noutras culturas, dão o nome de “patronímico”. Meu avô não sabia qual era seu sobrenome. Lá em Vitória da Conquista nunca tinha se preocupado em saber qual era, afinal de contas, o nome que o ligava às suas raízes mais profundas. Conhecendo meu avô, assim como me conheço, digo que ele deve ter pestanejado por alguns segundos enquanto a cabeça fervia em busca da informação que o funcionário (ou funcionária, aqui sem qualquer preocupação com o gênero do distinto cidadão) lhe solicitava, até chegar a uma conclusão simples: precisava desse tal sobrenome para, enfim, poder trabalhar. “Põe aí: Rodrigues”. E assim foi feito, datilografado, certificado, autenticado, rubricado e arquivado nas gavetas do tabelião. Anos depois, aquele homem que viria a se tornar meu avô apaixonou-se por uma normalista, filha de um empertigado comerciante paulistano, cujo nome, essa mulher – minha futura avó –, compartilhava com aquela pela qual se apaixonou o filho de espanhóis, meu avô, Laureano Gonçalves.
Eram Maria, todas as duas: aquela Barbosa, filha de um descendente de portugueses, bastante alto e carrancudo; esta de Sousa, filha de dois oriundi italianos, mas cujo sobrenome perdeu-se no tempo, uma vez que a família resolveu homenagear o país que a acolhia substituindo o veneziano Bacchin, pelo genérico Brasil.
De modo que, voltando ao começo, ao provérbio espanhol, que diz que o caminho quem faz é o caminhante, penso que talvez nesse caso muito particular, a sabedoria popular (da Espanha, mas poderia ser de qualquer outro ponto do mundo) deixou escapar uma parte da equação. Sim, sem dúvida é o caminhante que faz suas escolhas e se decide pela direita ou pela esquerda, se em frente ou se para o outro lado… Mas, e acredito que isso seja um fato, é muito difícil ser o que se é, poder fazer suas escolhas, optar, sem que haja um ponto no qual nos referenciamos. Se me perguntassem quem eu sou, acho que responderia: sou todos os que foram antes de mim, sou aqueles que são agora, sou os que serão depois de mim. E me orgulhar de ser um dos resultados de uma soma pouco ortodoxa, ainda que tão comum em nosso país, me dá força para me orgulhar de ser aquilo que sou: brasileiro, e ponto final. Há pessoas que não aceitam, que não se acostumam com a idéia, que gostariam de outra oportunidade para nascerem noutro canto… Eu, de minha parte, não. Gosto da minha história, daquilo tudo o que existiu antes de mim, que me forjou e que me possibilitou existir esse átimo de tempo.
Se você veio aqui atrás de saber “quem sou eu”, tem aí uma pequena pista: sou fruto de tudo o que houve antes, do que há e do que está por vir. Mais do que isso, por favor, me dê mais algum tempo pra descobrir.
PS importantíssimo: sei que sou corintiano, e quanto a isso, nenhuma objeção, obviamente.
PS normal: era pra ser um texto para o profilé do orkut, mas digamos que eu acabei me empolgando… Ninguém leria algo tão grande naquele espaço desconfortável.

pessoas, coisas

A Ana disse uma vez que é muito difícil ouvir Marisa Monte seguidas vezes e eu, na minha ignorância, achei que ela exagerava. Exageros são muito próprios da Ana. Dificuldade de admitir erros é uma das minhas propriedades mais desagradáveis – não consigo, ou pelo menos, demoro a fazer. Mas, enfim, um dia tentei ouvir muitas músicas da Marisa Monte, uma atrás da outra e realmente não consegui. O que não faz da Marisa Monte uma cantora ruim. A bem da verdade, gosto bastante do que ela fez até o tal do – qual era o nome? – “Tribalistas”. Aquilo era um chute no saco. Maldito Carlinhos Brown, que tem lá seu valor na Candial, mas devia ficar ali e não ir casar com filha nenhuma do Chico. Divago. Foda-se, quero divagar. A minha música favorita dessa semana da Marisa é “Magamalabares”, do “Barulhinho Bom”.

Pensei em citar vários nomes. Já falei da Ana. Falando em Ana, já ouviu falar em Julio Cortázar? Já ouviu, Ana? É um escritor argentino, que não era argentino. Nasceu na Europa e migrou com a família pra lá ainda criança. Criava cronópios embaixo da cama. A Carla citou uma passagem, um capítulo de “O jogo da amarelinha” no seu blog. A leda, há muito tempo, noutra era, quando ela ainda tinha cabelos compridos (e eu também), quando ela ainda não fazia teatro, quando ela era ainda menor do que é hoje, me emprestou “Histórias de Cronópios e Famas” e eu simplesmente me apaixonei pelo livrinho – pequeno e grande. Igual à leda (que não gosta de letras maiúsculas e eu penso que nunca mais vou conseguir escrever o nome dela com letra grande no início). Escrevo “Le…” e paro; daí escrevo direito: “leda“. Mas, Cortázar. A Giu conseguiu um exemplar novinho d’O Jogo…, saído do forno, direto da editora para mim! E acho que ela sabe como isso me deixa feliz. (Não deixem o chefe saber…)

A quem interessar possa: ainda não estou empregado, mas há grandes chances. E, não, não é dessa vez em que enriquecerei às custas dos meus anos de estudos geográficos. Há de chegar o dia. Não há? Não importa. Só quero poder ir viajar nos finais de ano. Quero poder comemorar as bodas de prata com minha esposa refazendo nossa viagem inesquecível de lua-de-mel. Igual a meus pais, que comemoraram ontem (que já é anteontem) vinte e cinco anos juntos – e se amando. Eles se amam. Os olhos ainda brilham. É isso, não quero só poder viajar, quero que ela queira ir comigo, renovar o amor, a escolha – reviver. Eles viajaram, na década de oitenta, de São Paulo a Torres, no Rio Grande do Sul, num fusca azul – cuja chapa (EN – 0341) dava nome ao carro: chamavam-no Eno. Seis mil quilômetros num fusca. Então, de novo, quero ter a condição, quero que ela queira, quero ter muitos discos pra ouvir no percurso, pra cantar junto.

Tanto tempo junto ensina muito sobre o outro, eu imagino. E imagino porque em menos de um ano de convivência, aprendi a entender bastante coisa sobre a moça por quem me apaixonei numa tarde quente do início do ano. Juro que foi assim: eu estava sentado, olhando pra alça da minha mochila, cultivando meu tique nervoso favorito (brincar com a alça), quando o carro parou em frente a um prédio no centro da cidade, ao lado da igreja matriz (sim, aqui há a praça da igreja matriz e sua respectiva igreja), a porta se abriu e eu levantei os olhos, esperando ver um rapaz que esperava a condução ali; quando fixei os olhos na janela, não vi apenas o rapaz, ele vinha acompanhado de duas moças: uma morena alta e uma mais baixa, com os cabelos castanho-claros volumosos, jogados às costas. Ela trazia uma pequena bolsa, dessas em que a alça atravessa o corpo transversalmente, e usava tênis, calça jeans e uma blusinha preta, dessas que colam no corpo. Não sei se colava, porque não consegui desgrudar os olhos dos olhos dela. Que não me olhavam. Não nos conhecíamos. Eu não tinha qualquer informação sobre ela. Ela nunca falara comigo. Mas no momento em que ela disse um “olá” geral, eu me desfiz. Tinha acontecido e não tinha mais volta. Aliás, não teve até agora. Hoje, meses depois, ela sabe de tudo. Penso em pintar com letras garrafais na parede do quarto a palavra: paciência. É só o que eu preciso. Acho. Espero. Tomara.

Deve ser a vigésima vez que toca “Magamalabares”. Não agüento mais. Vou pra cama ler “Geografia Urbana”, de Pierre George, e pensar nela. Por enquanto, é o que tenho. E não é ruim.

“tempo, tempo, mano velho…”

Tem dias que não acabam. De dois jeitos. Não acabam porque foram bons, e a gente fica relembrando o tempo todo, mascando feito chiclete os detalhes, refazendo os diálogos, analisando as reações, rindo de novo das piadas, enfiando aqui e ali coisas que não disse mas que deveria ter dito… Ou então, não acabam porque não fazem qualquer diferença. São dias monótonos, sem brilho, sem nenhum grande acontecimento; e aí eles se arrastam e, por exemplo, já passam das duas e meia da madrugada do dia seguinte e ainda é hoje. Entende?

Mas deve ser impressão minha.

Daí que ontem fiquei pensando em um monte de coisas, mas especialmente em uma: o tempo. (Puta pretensão. Mas é verdade.) Acho que talvez eu tenha entendido algo que pessoas mais experientes devem notar: há dois tempos. Há o Tempo – assim, letra maiúscula e tudo -, que é essa invenção da modernidade, aquele que o relógio marca, dividido em várias escalas, guiado pelo movimento dos astros… Quer dizer, o Tempo ele-mesmo. Mas há também, e isso é bastante incrível, se você parar pra pensar, há uma infinidade de possibilidades de percepção desse Tempo, que vão variar e se realizar em cada um de nós. Ou seja, aquela história de que para alguns, uma hora é um tempo (minúscula, eu acho) tão grande e tão interminável quanto é, para outros, uma década. Acho que não é só mera questão de exagero, acontece de fato.

São várias dimensões. São infinitas as maneiras como essas dimensões se relacionam e também são bem grandes as diferentes maneiras com que cada um percebe essas variações.

O que me leva a crer que o que amanhã parecerá apenas uma conversa trivial de alguns poucos minutos para a diretora e para a coordenadora pedagógica da escola, para mim se assemelhará a um intervalo imenso, quase uma era geológica completa. Tudo isso só porque eu posso sair de lá empregado, ou seja, tenho que tentar não fazer nenhuma merda por maior que seja o meu tempo de permanência diante das duas…

Vou me esforçar pra quebrar meu recorde.