O caminho quem faz é o caminhante. Um provérbio espanhol… Será que consigo traduzi-lo? Acho melhor não. Ouvi da boca de uma geógrafa gaúcha, de sobrenome Suertegaray, que veio palestrar semanas atrás para alguns alunos da pós-graduação.
Espanhóis adoram provérbios e tem frases feitas sobre todas as coisas. Inclusive dizem que “
para juzgar a un pueblo conviene leer sus proverbios”; de modo que se especializaram na produção dessas sacadas tão pitorescas, recheadas de sabedoria popular.
E daí você me pergunta: o que isso tem a ver contigo, se veio aqui para ler sobre mim e não sobre provérbios? Bom, meu avô era filho de espanhóis. Não adianta? Vieram de Valência, meus bisavós. “Per fare l’America.” Ah, não… Esses são os outros. Venezianos, tutti quanti. Então, pronto, começamos a nos entender. Quer ver? Pois explico.
Tem muita gente que não suporta a idéia de que podemos nos orgulhar de ter nascido nesse ou naquele lugar, não entendem ou não aceitam o que chamam de “cegueira patriótica”. Primeiro ponto, portanto: não sou desses, haja visto que me orgulho até mesmo dos locais de nascimento dos meus antepassados. Gosto de imaginar que a construção histórica que deu origem à família Bacchin de Veneza e à família Gonzales de Valência, de um jeito ou de outro, acabam influenciando na minha própria vida. Dizem que os espanhóis têm o sangue quente – e se isso for verdade, ela se realiza em mim, se não for, bom, então eu sou só um cara de “pavio curto”, como se diz.
Por outro lado, tenho um avô baiano de Vitória da Conquista. Aqui cabem algumas outras considerações.
Não conheço pessoa mais afeita ao trabalho árduo do que meu querido avô, que beirando os noventa anos, continua ativo e atarefado como quando chegou por aqui, fugido da terra natal. Fica portanto descartada a idéia do “baiano indolente”. Outra coisa. Meu avô quando chegou a São Paulo tinha que trabalhar e isso só se fazia com uma carteira de trabalho assinada (estávamos bem além das reformas trabalhistas propostas por Vargas, lá pelos idos de 1930); então, mui prontamente, ele se encaminhou à repartição pública responsável por esse serviço, buscando satisfazer as condições impostas pela lei (ora, a lei). Quando lhe perguntaram seu nome, respondeu prontamente: “José Bonifácio”. E quedou-se calado, à espera de nova solicitação. O funcionário público, naquele tempo já experimentado na lide de seu ofício diário, viu-se na obrigação de esclarecer a meu avô que um nome completo compunha-se de um nome próprio – que ele já dissera – e de um sobrenome, que de uma certa forma, remetesse à família da qual a pessoa descendia – a que, noutras culturas, dão o nome de “patronímico”. Meu avô não sabia qual era seu sobrenome. Lá em Vitória da Conquista nunca tinha se preocupado em saber qual era, afinal de contas, o nome que o ligava às suas raízes mais profundas. Conhecendo meu avô, assim como me conheço, digo que ele deve ter pestanejado por alguns segundos enquanto a cabeça fervia em busca da informação que o funcionário (ou funcionária, aqui sem qualquer preocupação com o gênero do distinto cidadão) lhe solicitava, até chegar a uma conclusão simples: precisava desse tal sobrenome para, enfim, poder trabalhar. “Põe aí: Rodrigues”. E assim foi feito, datilografado, certificado, autenticado, rubricado e arquivado nas gavetas do tabelião. Anos depois, aquele homem que viria a se tornar meu avô apaixonou-se por uma normalista, filha de um empertigado comerciante paulistano, cujo nome, essa mulher – minha futura avó –, compartilhava com aquela pela qual se apaixonou o filho de espanhóis, meu avô, Laureano Gonçalves.
Eram Maria, todas as duas: aquela Barbosa, filha de um descendente de portugueses, bastante alto e carrancudo; esta de Sousa, filha de dois oriundi italianos, mas cujo sobrenome perdeu-se no tempo, uma vez que a família resolveu homenagear o país que a acolhia substituindo o veneziano Bacchin, pelo genérico Brasil.
De modo que, voltando ao começo, ao provérbio espanhol, que diz que o caminho quem faz é o caminhante, penso que talvez nesse caso muito particular, a sabedoria popular (da Espanha, mas poderia ser de qualquer outro ponto do mundo) deixou escapar uma parte da equação. Sim, sem dúvida é o caminhante que faz suas escolhas e se decide pela direita ou pela esquerda, se em frente ou se para o outro lado… Mas, e acredito que isso seja um fato, é muito difícil ser o que se é, poder fazer suas escolhas, optar, sem que haja um ponto no qual nos referenciamos. Se me perguntassem quem eu sou, acho que responderia: sou todos os que foram antes de mim, sou aqueles que são agora, sou os que serão depois de mim. E me orgulhar de ser um dos resultados de uma soma pouco ortodoxa, ainda que tão comum em nosso país, me dá força para me orgulhar de ser aquilo que sou: brasileiro, e ponto final. Há pessoas que não aceitam, que não se acostumam com a idéia, que gostariam de outra oportunidade para nascerem noutro canto… Eu, de minha parte, não. Gosto da minha história, daquilo tudo o que existiu antes de mim, que me forjou e que me possibilitou existir esse átimo de tempo.
Se você veio aqui atrás de saber “quem sou eu”, tem aí uma pequena pista: sou fruto de tudo o que houve antes, do que há e do que está por vir. Mais do que isso, por favor, me dê mais algum tempo pra descobrir.
PS importantíssimo: sei que sou corintiano, e quanto a isso, nenhuma objeção, obviamente.
PS normal: era pra ser um texto para o profilé do orkut, mas digamos que eu acabei me empolgando… Ninguém leria algo tão grande naquele espaço desconfortável.